segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O sonho dos vivos

Também tenho uma teoria de cordas. Debaixo da terra existe uma roca, que marca o compasso de cada viajem. Como as viagens são muitas os compassos são indistinguíveis, mas a roca essa é sempre audível, à noite quando me deito na cama.

Quando durmo vejo o passado.

A minha mãe costurava para si, suponho que gostava de se vestir com coisas próprias, ou então, tinha no crepitar da máquina de coser a morte da saudade do barulho ctónico. Os fios vinham de longe. De hoje há quinhentos anos chegavam em barcos do oriente à colunata de um cais italiano. De há quinhentos para cá chegavam nos estofos dos Fiat’s pretos lá em baixo na estrada. No peitoril tenho um urso amarelo, um que me deu a minha tia morta, neste sonho e em outros. A minha tia também tinha amarelo, tinha-o no Betadine das mãos e no saco de urina que acompanhava a sua cadeira de rodas. É um urso giro, tem um sol no nariz, um sol de fim de tarde, como a clara de um ovo de gema vermelha, que o fumo dos escapes dos carros pretos lá em baixo distorce.

A minha mãe costura e canta, porque as mulheres sempre cantaram. O telefone toca, é outra tia. Uma tia que mora longe, numa casa grande no meio de matas. Tirando a sorrateira e fugaz visita de alguma criança, a entrada dessa casa raramente era visitada. Era um hall pequeno com portas de vidro e um bengaleiro em cristal. Sobre uma mesinha pesava uma ninfa em mármore que era também um candeeiro. Um nicho romântico com paredes de pêssego e a vivacidade de umas coloridas uvas plásticas junto ao telefone. Essa outra tia era muito auspiciosa, falava em provérbios, da vida na vila e da misteriosidade dos caminhos do Senhor. Dizia-se na altura que este escrevia direito por linhas tortas, e já então não sabiam as pessoas que alguma linha há direita, ou recta, conforme a expectativa.

Acordo. Quando me deito à noite e sonho, perco frequentemente o raciocínio. Era justamente disso que falava Mercúrio, muito viajado, quando falava da estrada da morte.

“Para a estrada precisas de um carrinho.”
“Neste sonho? Mas nem foram inventados!”
“Preferes uma liteira, um cavalo?”
“Gosto de cavalos…”
“E de um carrinho… de linha.”

Estendendo-mo, disse-me para ir dali à retrosaria. Eu não sabia o que era uma retrosaria. Por falta de sono, ou insistência do despertador adiei a viagem, sabia-me com tempo.

Nesse mesmo dia ao almoço falavam no noticiário de uma senhora que havia sido colhida por um comboio, com a mesma inevitabilidade com que o tempo vai colhendo os dióspiros maduros nas árvores do quintal. A senhora caminha morta. Aproximando-se numa torta convalescença, diz ser maior que o tempo.

“Sabes rapaz, porque tens tempo?”
“…”
“Num sonho ido nasceu lá ao longe, para trás dos montes, onde está o mar, uma rapariga. O seu corpo era a pérola do mar ameno e os seus cabelos, doirados pelos quatro ventos, eram a inveja da rebentação mais alta das ondas. Nasceu no mar porque o corpo do tempo foi retalhado, e sem corpo o tempo tornou-se infinito.”
“…”
“… Mas neste sonho todos estão mortos, porque nós os matamos, certo?”
“… Nós?”
“Não tu, eu e as minhas irmãs… Vês a linha do comboio? É uma possibilidade…”

Virei-me. A linha do comboio abria-se dali para o horizonte, como os extremos das maiúsculas vogais extremas, perdendo-se madeira e ferro no pó e na areia.

Os meus pais sempre foram pessoas sensíveis, pelo que todos os anos vão até á praia no primeiro dia do ano. Por essa altura o Atlântico é revolto e gelado, não que pelo Verão o gelo diminua substancialmente. Nessas deslocações em família faço-me acompanhar pelo mp3, é sempre bom ter um som para preencher os tédios.

Há muitos anos, antes de a minha tia ter deixado a cadeira de rodas, e de a outra tia deixar de telefonar de uma casa - que em perspectiva nem era muito distante - já esta costa aqui estava, os mesmos grãos de areia tropeçavam na rebentação e a mesma amurada resistia aos temporais. Também na altura já existiam televisores, também se noticiavam mortes mais ou menos trágicas. Já em todas as costas se havia perdido vidas, e em todas as famílias chorado a morte de um homem.

Naquele momento contudo, caminhando pela marca das gaivotas estava uma mulher. Um esvoaçar de farrapos dava-lhe um ar espectral sob o pálido disco solar que as nuvens carregadas filtravam.

“Sabes rapaz, quem sou eu?”
“É a rapariga que nasceu no mar?”
“Não… essa matámo-la.”
“Você e suas irmãs?”

Puxando-me ao de leve a orelha, “ ?Sabes rapaz, porque tens música….”

Acordo. A música que o mp3 debita aperta-me no peito, aquilo que julgo ser a alma. Uma mão tão fina e delicada, que revejo a mulher na praia com uma expressão calma, puxando o fio que me cose o coração. Acontece à noite, quando as pessoas dormem, quando posso esquecer a responsabilidade do mundo. Aí ouço a roldana lá no fundo e ouço-a ecoar em mim.

“Sabes rapaz, porque tens amor?”
“…”
“Tu sabes, tu sentes, acabando o carrinho que trazes nas mãos, acaba-se a sorte, sempre acabam todos os fados.
Eu sou – somos - Cloto, Láquesis, Átropos, a Morta.”

E eu sei, sei-me nesse fundo onde o tempo depositou a verdade, que a qualquer momento o fio parte e o despertador toca. Átropos, a Morta.

7 comentários:

  1. Antes de Átropos, vive a Láquesis, sorteando e dividindo. Antes de Láquesis, trabalha Cloto, tecendo e fiando. Lema: Átropos nos fins dos tempos. A vida é um ciclo com corpo, que se rege por etapas sequenciais. Vive-as continuamente ao teu saber.
    Fica bem.

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  2. Muito bom.....profundo!!

    visita o meu blog:
    http://1-everything-for-everyone.blogspot.com/

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  3. Olá, RP! Vim dizer-te que tens um miminho no meu blogue para ti. ;)

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  4. RP, espero que não tenhas desaparecido!! Estou de volta para te dizer que te selei outra vez, é apenas mais um gesto de carinho, para saberes que ando por perto a vigiar o teu cantinho, que, com muita pena minha, não é actualizado tantas vezes quantas eu gostava.

    Passa no meu cantinho para os receberes se quiseres! ;)

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  5. Já se sente falta de algo teu por aqui...;)

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  6. Obrigado a tod@s que me sentem a falta, vou tentar trazer qualquer coisa honesta em breve.

    Dark angel, obrigado mais uma vez. Tens de me explicar como se colocam os selos no blog eheh ;)

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  7. É muito simples, mas essa dificuldade é sentida por mais pessoas e eu entendo, porque no primeiro selo que recebi foi a mesma coisa... Faz assim : copia a imagem para uma pasta do teu pc. Depois entras no blogue e em PERSONALIZAR tens a opção do ESQUEMA. Quando já estiveres no esquema, aparece-te do lado superior direito "ADICIONAR MINI-AMPLIAÇÃO". Clicas aí e fazes a carga da imagem proveniente da pasta onde colocaste a imagem. Eu sei que parece confuso, mas na realidade é muito simples. Tenta e se precisares de ajuda vai dizendo que eu ajudo, ok? ;) fico contente por teres aceite os miminhos :)

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