quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Desalento

O melhor do Homem não tem palavras, não há grito assim gravado.

As expressões não ficam, seja afecto ou desagrado, diluído ou desajustado, lágrimas...

A cadência é uma corrente que se revolta em curvas de metro, em carris oleosos, bancos gastos.
...

Os passos, esses, são ecos. Colados como as pastilhas velhas aos volumes, existem nas paredes, no tecto e muito raramente no chão. Porque não tendo o melhor do Homem palavras, poucos são os que caminham a terra. E aproximando-se da linha o melhor do Homem acontece então, no salto.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Afogamento

Quando as gotas caem escuras
No chão descalço que pisas em calos,
Perguntas à noite que rosário seguro
Te reserva a água escorrendo nos ralos.

Quando as gotas caem mudas na parede,
Adoçando à cal sombria os espinhos,
Perguntas à chuva onde queda o teu muro,
Fortaleza efémera tomada ao destino.

Quando o tempo passando te lavar a ferida
E vires o pátio em água desfeito,
Tornarás a ver o sentido nas rosas
Que mudando de cor uma vez mais contigo,
Se deitam mortas inundando-te o leito.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Aurora

Todas as janelas têm uma aurora,
Todos os dias o momento em que levantam.
Mas o quarto permanece vazio e o silêncio nos cantos.
E não acordo, não acordo, porque não tenho armas.

A linha vai subindo, degolando a parede.
E todos os dias que acordam trazem medo,
Trazem pó e lençóis amarrotados.
E não acordo, não acordo, porque não tenho armas.

Os dias crescem com as roupas no chão
E não acordo, não acordo, não tenho medo!
Não tenho medo… os olhos rasgados, os lábios rompidos,
A retina retida no copo tombado.

Todos os dias têm uma aurora
E não tenho medo porque se levantam.
Já não me fere o pó e a luz nos estores partidos,
Que não tem corpo a quem na dor a alma… falha.


Os dias sobem, elevam o traço, imergindo o sentido que a mão aponta à água.
Ah! Aurora…

sexta-feira, 26 de março de 2010

26.03.2010

Passou tempo, não sabia exactamente quanto. Foi por esta altura do ano, e a tua campa confirma-o. Quatro anos e poucos dias.
Há quatro anos e poucos dias desligaram-te as máquinas. Nada havia a fazer, era tão só o teu corpo e a nossa mágua…
No corredor da escola disseram-me que tinhas estado envolvido no acidente aparatoso do fim-de-semana que passara. Não parecia verdade, não contigo, tão bem disposto… ainda recordo as covinhas do teu sorriso, agora pequenas na cova do teu corpo. Ficaste um buraco, um medo, porque levaste contigo um pedaço da esperança.
Hoje, sob as varetas torcidas do guarda-chuva e o gotejar anunciado de Abril, voltei onde repousas e perguntei-me quantos de nós ainda te visitam. Alguns queriam que se colocasse uma foto da turma dentro do caixão. Não dava, já havia sido selado, e só tu sabias do alívio que senti, parecia-me tão macabro.
Em cima de ti está um livro de mármore, deixaram-to os teus padrinhos. Começa assim: “Tiago!”, e logo a voz da tua mãe ecoa nos meus ouvidos, as raparigas a chorar, desalmadas. Retraí-me, não sabia se seria adequado ou legítimo um rapaz chorar por ti também. O Carlos também chorava, era a desculpa de que precisava. Foi assim... juntamos na chuva as nossas lágrimas, os gritos reverberados, por ti envoltos nos farrapos cinzentos do céu onde por uns momentos de fervor te quisemos em paz, envolto o teu corpo nessa mortalha de esperança com que os vivos se separam da morte.
Deus queira que haja um céu, que o meu coração não dá para tanta alma, Tiago…

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O sonho dos vivos

Também tenho uma teoria de cordas. Debaixo da terra existe uma roca, que marca o compasso de cada viajem. Como as viagens são muitas os compassos são indistinguíveis, mas a roca essa é sempre audível, à noite quando me deito na cama.

Quando durmo vejo o passado.

A minha mãe costurava para si, suponho que gostava de se vestir com coisas próprias, ou então, tinha no crepitar da máquina de coser a morte da saudade do barulho ctónico. Os fios vinham de longe. De hoje há quinhentos anos chegavam em barcos do oriente à colunata de um cais italiano. De há quinhentos para cá chegavam nos estofos dos Fiat’s pretos lá em baixo na estrada. No peitoril tenho um urso amarelo, um que me deu a minha tia morta, neste sonho e em outros. A minha tia também tinha amarelo, tinha-o no Betadine das mãos e no saco de urina que acompanhava a sua cadeira de rodas. É um urso giro, tem um sol no nariz, um sol de fim de tarde, como a clara de um ovo de gema vermelha, que o fumo dos escapes dos carros pretos lá em baixo distorce.

A minha mãe costura e canta, porque as mulheres sempre cantaram. O telefone toca, é outra tia. Uma tia que mora longe, numa casa grande no meio de matas. Tirando a sorrateira e fugaz visita de alguma criança, a entrada dessa casa raramente era visitada. Era um hall pequeno com portas de vidro e um bengaleiro em cristal. Sobre uma mesinha pesava uma ninfa em mármore que era também um candeeiro. Um nicho romântico com paredes de pêssego e a vivacidade de umas coloridas uvas plásticas junto ao telefone. Essa outra tia era muito auspiciosa, falava em provérbios, da vida na vila e da misteriosidade dos caminhos do Senhor. Dizia-se na altura que este escrevia direito por linhas tortas, e já então não sabiam as pessoas que alguma linha há direita, ou recta, conforme a expectativa.

Acordo. Quando me deito à noite e sonho, perco frequentemente o raciocínio. Era justamente disso que falava Mercúrio, muito viajado, quando falava da estrada da morte.

“Para a estrada precisas de um carrinho.”
“Neste sonho? Mas nem foram inventados!”
“Preferes uma liteira, um cavalo?”
“Gosto de cavalos…”
“E de um carrinho… de linha.”

Estendendo-mo, disse-me para ir dali à retrosaria. Eu não sabia o que era uma retrosaria. Por falta de sono, ou insistência do despertador adiei a viagem, sabia-me com tempo.

Nesse mesmo dia ao almoço falavam no noticiário de uma senhora que havia sido colhida por um comboio, com a mesma inevitabilidade com que o tempo vai colhendo os dióspiros maduros nas árvores do quintal. A senhora caminha morta. Aproximando-se numa torta convalescença, diz ser maior que o tempo.

“Sabes rapaz, porque tens tempo?”
“…”
“Num sonho ido nasceu lá ao longe, para trás dos montes, onde está o mar, uma rapariga. O seu corpo era a pérola do mar ameno e os seus cabelos, doirados pelos quatro ventos, eram a inveja da rebentação mais alta das ondas. Nasceu no mar porque o corpo do tempo foi retalhado, e sem corpo o tempo tornou-se infinito.”
“…”
“… Mas neste sonho todos estão mortos, porque nós os matamos, certo?”
“… Nós?”
“Não tu, eu e as minhas irmãs… Vês a linha do comboio? É uma possibilidade…”

Virei-me. A linha do comboio abria-se dali para o horizonte, como os extremos das maiúsculas vogais extremas, perdendo-se madeira e ferro no pó e na areia.

Os meus pais sempre foram pessoas sensíveis, pelo que todos os anos vão até á praia no primeiro dia do ano. Por essa altura o Atlântico é revolto e gelado, não que pelo Verão o gelo diminua substancialmente. Nessas deslocações em família faço-me acompanhar pelo mp3, é sempre bom ter um som para preencher os tédios.

Há muitos anos, antes de a minha tia ter deixado a cadeira de rodas, e de a outra tia deixar de telefonar de uma casa - que em perspectiva nem era muito distante - já esta costa aqui estava, os mesmos grãos de areia tropeçavam na rebentação e a mesma amurada resistia aos temporais. Também na altura já existiam televisores, também se noticiavam mortes mais ou menos trágicas. Já em todas as costas se havia perdido vidas, e em todas as famílias chorado a morte de um homem.

Naquele momento contudo, caminhando pela marca das gaivotas estava uma mulher. Um esvoaçar de farrapos dava-lhe um ar espectral sob o pálido disco solar que as nuvens carregadas filtravam.

“Sabes rapaz, quem sou eu?”
“É a rapariga que nasceu no mar?”
“Não… essa matámo-la.”
“Você e suas irmãs?”

Puxando-me ao de leve a orelha, “ ?Sabes rapaz, porque tens música….”

Acordo. A música que o mp3 debita aperta-me no peito, aquilo que julgo ser a alma. Uma mão tão fina e delicada, que revejo a mulher na praia com uma expressão calma, puxando o fio que me cose o coração. Acontece à noite, quando as pessoas dormem, quando posso esquecer a responsabilidade do mundo. Aí ouço a roldana lá no fundo e ouço-a ecoar em mim.

“Sabes rapaz, porque tens amor?”
“…”
“Tu sabes, tu sentes, acabando o carrinho que trazes nas mãos, acaba-se a sorte, sempre acabam todos os fados.
Eu sou – somos - Cloto, Láquesis, Átropos, a Morta.”

E eu sei, sei-me nesse fundo onde o tempo depositou a verdade, que a qualquer momento o fio parte e o despertador toca. Átropos, a Morta.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Considerações sobre ele

Não, não é vergonha. Se saio para a rua travestido, ensanguentado num banho de lágrimas. Não é tristeza ou desespero, é a saudade que me crava o peito no passado. Não, não é mais do mesmo, não é drama, tão pouco negação, é morte que tomo aos fôlegos e me revolve as entranhas, esfaqueia a carne, a rima e a harmonia. Não sei não com que fio teceis a vida e a inspiração, mas o punhal é tão fundo, e fundo tão aberto o peito em que desperto neste leito, onde violado fui traído pelo presente, filho do passado, que degenerando afinal não era garantido. Choro.

Parece tudo hoje tão perene, e junto ao rio deito o corpo cansado, os olhos doridos, só morte me fala aos ouvidos, e não sei mais... ah não sei do amparo! quando o único conforto que tenho é a verticalidade das minhas paredes! Choro.

Cegasse-me o encanto e não soasse igual este pranto, estas palavras, por quem és! Prostrava-me escovando-te as botas, lavando-te os pés, e qual humilhação?!? De quem, de quem a verdade? É vergonha Senhor!? Aceitar a vida na metade, receber puro o substantivo morte, e reinar um trono de rosas quando não me desejas as chagas por inteiro!?
Matai-me agora, oh sim matai-me, Choro! mas Senhor, amai-me primeiro!